Muito além da violência armada, o crime organizado no Brasil tem usado uma ferramenta inesperada e poderosa para legitimar seu poder em presídios e periferias: a religião. Um estudo da pesquisadora Karina Biondi, da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), revela como a fé é cooptada para criar uma base moral para a dominação.
Os “Pastores do Crime” e o código de conduta
A estratégia se manifesta na figura dos “pastores do crime“: membros de facções que se convertem, geralmente a vertentes neopentecostais, e assumem posições de liderança religiosa dentro e fora das prisões. Eles usam a linguagem da fé para impor um código de conduta que, na verdade, corresponde às regras da própria facção, punindo desvios com uma justificativa supostamente moral ou divina.
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A “paz” e a “justiça” segundo a facção
A tática é sofisticada e coopta a própria linguagem da fé. Termos como “paz” e “justiça”, caros ao discurso religioso e ao lema do crime, são esvaziados de seu sentido original e preenchidos com a lógica da facção. Nessa nova ordem, “paz” não significa ausência de conflito, mas a submissão total às regras impostas pelo crime. “Justiça” é o “tribunal” da facção, que pune quem desobedece.
O vácuo deixado pelo Estado
Esse fenômeno floresce onde o Estado falha. Em presídios superlotados e periferias abandonadas pelo poder público, as facções oferecem uma forma de “ordem” e “governança”. Ao unir essa estrutura de poder a uma base religiosa, elas criam uma legitimidade que a simples força não alcançaria, apresentando-se como a única autoridade capaz de manter a ordem naqueles territórios.
Por que isso importa
Este avanço não se trata apenas de criminalidade, mas da formação de um poder paralelo com sua própria base moral e social. Ao se apropriar do discurso religioso, o crime organizado torna-se mais complexo e difícil de combater, pois sua influência deixa de ser meramente coercitiva para se tornar ideológica. É um desafio que vai além da polícia, exigindo uma reavaliação profunda das políticas públicas para o sistema prisional e para as periferias, onde a ausência do Estado abre caminho para a “fé do crime”.