SÃO PAULO – O fantasma da seca retorna a São Paulo, desta vez sob uma nova gestão. Reportagem do jornalista Rafael Oliveira publicada pela agência Pública, mostra que 11 anos após a pior crise hídrica de sua história, o estado enfrenta níveis preocupantes nos reservatórios, com o Sistema Integrado Metropolitano em seu menor volume desde janeiro de 2016 e o Cantareira operando com apenas 22% da capacidade. A diferença fundamental neste novo capítulo de escassez é que a crise hídrica se desenrola sob o comando de uma Sabesp privatizada, gerando debates acalorados sobre os impactos da gestão privada em um setor essencial.
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A concessão da Sabesp à iniciativa privada, concluída em julho de 2024 pelo governo Tarcísio de Freitas, transferiu o controle da maior empresa de saneamento do país para a Equatorial em um negócio que injetou R$ 14,7 bilhões nos cofres estaduais. O movimento acompanha uma tendência nacional: enquanto em 2015 apenas 238 municípios tinham saneamento gerido por empresas privadas, em 2025 esse número salta para 1.820, impulsionado pelo Marco Legal do Saneamento de 2020.
Para Amauri Pollachi, ex-presidente da Associação dos Profissionais Universitários da Sabesp e atual conselheiro do Observatório Nacional dos Direitos à Água e Saneamento (Ondas), a crise hídrica atual expõe as contradições do modelo privado. “O foco é gerar o máximo possível de lucro, extrair o máximo possível de dividendo”, afirma em entrevista à Agência Pública, questionando a capacidade de uma empresa com objetivos lucrativos gerir adequadamente uma crise de proporções públicas.
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Estratégias de enfrentamento: Do bônus ao racionamento velado
A resposta inicial da Sabesp à crise hídrica tem sido a redução de pressão na rede durante a noite, medida que já gerou reclamações por falta de água em diversos bairros. Pollachi critica a abordagem: “O que está sendo posto é institucionalizar a falta de água“. A estratégia contrasta com as medidas adotadas na crise de 2014/2015, quando a empresa pública implementou um sistema de bônus para quem reduzisse o consumo em mais de 20%, alcançando 86% de adesão da população.
A ausência do sistema de bônus no atual plano de contingência, em consulta pública na Arsesp (Agência Reguladora de Serviços Públicos do Estado de São Paulo), é vista com preocupação por especialistas. Para Pollachi, a explicação é simples: “Porque vai reduzir lucro e dividendo. Se eu vou reduzir a retirada [de água], o bônus que os diretores têm direito, vai se reduzir”.
Dados do Instituto Água e Saneamento revelam que as retiradas do Sistema Metropolitano aumentaram de 59 m³/s para 72 m³/s entre 2016 e 2025. A Sabesp atribui o crescimento ao aumento populacional, mas Pollachi contesta: “Nada explica o crescimento desse patamar de 66 m³/s para 72 m³/s. É um crescimento de 10% em dois anos”. Ele calcula que, mesmo atendendo todas as 700 mil pessoas que estavam sem abastecimento antes da privatização, o aumento seria de apenas 2 m³/s.
Transparência e regulação sob questionamento
A regulação do serviço aparece como outro ponto de preocupação. Pollachi avalia que a Arsesp está “extremamente fragilizada” após a privatização. “O contrato instituiu duas novas entidades: uma empresa verificadora independente, que vai verificar os investimentos, e uma empresa avaliadora, que vai verificar o atingimento das metas. A Arsesp foi esvaziada de funções“, explica.
A falta de transparência sobre indicadores cruciais, como o volume de perdas e a natureza das novas ligações anunciadas pela empresa, preocupa especialistas. Pollachi relata que “é perceptível que houve uma deterioração na qualidade dos serviços”, citando reclamações sobre infiltração de esgoto na rede de água e lançamento de esgoto in natura nos rios Tietê e Pinheiros.
O programa de demissões voluntárias também é alvo de crítica. De aproximadamente 12 mil funcionários há dois anos, a empresa deve fechar 2025 com cerca de seis mil, perdendo experiência técnica valiosa para o enfrentamento de crises. Enquanto isso, a promessa de universalização foi antecipada de 2033 para 2029, mas Pollachi questiona a viabilidade do novo prazo: “É um número meramente eleitoral, para buscar dividendos eleitorais”.
Importante Saber
Qual a situação atual dos reservatórios que abastecem São Paulo?
O Sistema Integrado Metropolitano está com cerca de 27% de sua capacidade, o menor nível desde janeiro de 2016. O Sistema Cantareira opera com apenas 22%, também o pior índice desde fevereiro de 2016, período crítico da última grande seca.
Como a gestão privada afeta o enfrentamento da crise hídrica?
Especialistas apontam que o foco no lucro pode levar a escolhas diferentes das que seriam feitas por uma empresa pública. A opção por redução de pressão noturna, em vez de programas de bonificação por economia, é citada como exemplo dessa mudança de prioridades.
Há previsão de aumento nas tarifas?
Segundo analistas, o contrato de privatização estabeleceu uma moratória de reajustes tarifários até após as eleições de 2026. A expectativa é de que em 2027 ocorra um aumento significativo nas tarifas para compensar os investimentos necessários.
O cenário de crise hídrica em São Paulo coloca à prova não apenas a resiliência do sistema de abastecimento, mas também o modelo de gestão privada de um serviço essencial. Enquanto a estação chuvosa se desenvolve abaixo das expectativas, a população paulista aguarda para ver se a experiência bem-sucedida de 2014/2015 poderá ser repetida sob nova gestão, ou se o estado testemunhará o aprofundamento de um problema que parecia ter sido superado.






